segunda-feira, maio 08, 2006

O filme - Capote, Bennett Miller






É por estas e por outras que eu gosto tanto da América e não gosto tanto dos EUA, a 1ª é uma deliciosa entropia, enquanto que a segunda propõe uma conspirativa anomia para vencer o melhor que tem, a 1ª.

A coisa começou complicada para escrever sobre um objecto de arte muito singelo: Capote. O filme. Vagamente inspirado no período da vida de Truman Capote em que ele escreve À Sangue Frio. Não li o livro, apesar de o ter lá em casa, na estante.

Acontece que, para mim, Truman Capote é o argumentista de Breakfast at Tiffany’s, a minha comédia romântica preferida, a melhor de todas, afirmo eu, que tenho um fraco por comédias românticas, por isso, sei do que estou a falar. Provavelmente, só por isso, já iria ver o filme. Seguramente, fui vê-lo por ter como protagonistas Catherine Keener e Philip Seymour Hoffman, dois actores que merecem toda a minha admiração, pelo seu criterioso u percurso, que passa muito pelo cinema independente ou alternativo, e pelo talento óbvio de cada um deles.

(Abro um parêntesis para explicar a minha «queda» pela Catherine Keener. Quem gosta de cinema tem a tendência em fixar as «grandes» ou as «mais belas» ou «as mais belas grandes» actrizes, eu também o faço, mas, paralelamente, resolvi criar a minha categoria de actrizes, «as-fantásticas-e-maravilhosas-que-nunca-serão-grandes-nem-belas-mas-são-sublimes», aí, incluo a Catherine Keener, junto a Debra Winger, a Angela Basset, a Julianne Moore, a Annabella Sciorra, a Linda Fiorentino, a Dianne Keaton. São actrizes que impressionam por nunca serem óbvias, sorriem, não riem, soluçam, não choram, soslaiam, não olham, dizem, não falam, seduzem, não apaixonam, são imperfeitas, não são bonecas, são lindas, sem ser belas, são admiráveis.)

Volto ao Capote. O filme.

O intrigante do filme é que ele é culturalmente negro, não no sentido do film noir, mas no sentido afro-americano de negro. Não, a minha análise não resulta de qualquer obsessão culturalista, mas somente de uma interpretação do que vi na obra, algo, que qualquer um pode ver, desde que não seja um crítico de cinema europeu, de hoje.

Explico-me.

Logo numa das 1ªs cenas, daquelas com impacto, em que o actor principal (faz-se ao Oscar) desbordando interpretação, dominado a cena com trejeitos e palavras, o argumentista (faz-se ao Oscar, também) concebendo uma reflexão inteligente sobre James Baldwin, as suas condições (gay e negro) e a sua obra e, finalmente, o realizador (faz-se ao Oscar, igualmente), filmando, majestosamente, uma festa numa cave, com travellings sobre Philip Seymour Hoffman e a sua audiência, subtilmente, direccionando a câmara para um negro que descia ou subia as escadas (já não me lembro bem), que poderia bem ser James Baldwin, pela parecença física. Delicioso.

E depois, continuamos com a centralidade narrativa da personagem de Catherine Keener, Harper Lee, assistente e amiga de Capote, escritora e autora do livro Não Matem a Cotovia / To Kill a Mockbird, que li e tenho lá em casa e que deu origem ao magnífico filme com o mesmo nome, com o qual Gregory Peck ganhou um Oscar, se não me engano, e que também tenho lá em casa em DVD.

(Abro outro parêntesis para dizer que Não Matem a Cotovia, o filme, é dos preferidos dos meus pais, lembro-me de os ouvir repetir, vezes sem conta, da sua admiração por essa obra.)

De facto, Capote, o filme sem a Harper Lee não é nada, perde toda a complexidade narrativa, sobretudo, ao insistir-se em acentuar o contraste entre a segurança dela como escritora e a insegurança do Truman Capote na construção da sua escrita e na sua dificuldade em distanciar-se da realidade da obra para, verdadeiramente, a tornar ficção, sendo que os dois partilhavam de algumas mesmas angústias. O melhor do filme, o único filme que vi.


Abílio Neto

1 comentário:

manuel cardoso disse...

subscrevo inteiramente cada palavra que está acima!