terça-feira, fevereiro 14, 2006

A política - Legislativas 26.Março.2006 (I)





O Presidente da República de São Tomé e Príncipe (STP) anunciou a data das Eleições Legislativas: 26.Março.2006.

E começou a montagem de outro circo de disparates e vacuidades, que já vinha de antes, protagonizado por personagens de toda a vida, que insistem, e continuam a insistir, em ser maus acrobatas, trapezistas desajeitados, domadores medricas, leões sem garra nem juba, alegres palhaços de alma triste, sublimemente dirigidos por Mestres de Cerimónias, MCs, incapazes de olhar de frente para o seu público e esboçar um simples sorriso, não sendo capazes de transmitir, assim, um pouco de sonho, de ilusão, de esperança e de história.

Não gosto de circos, é sempre muito barulho para muito pouco, e como penso que o país precisa de calma para fazer muito, vou contar uma história que se passou num almoço tranquilo, num restaurante, em Lisboa.

Há dias, por culpa do Expresso, que trazia um artigo sobre STP, um amigo não santomense, enquanto almoçávamos, entendeu perguntar-me o que eu achava do clima actual do meu país, embaraçando-o e desembaraçando-me, respondi: «o de sempre, muito nublado no interior montanhoso, com algumas abertas no litoral, os habituais 25/27 graus e a humidade entre os 70 e os 90!». Insistiu, «o clima político!». Apesar de eu ter insistido em dar a mesma resposta, «o de sempre...», omitindo no interior montanhoso, no litoral, graus, a humidade, não foi o suficiente, obrigou-me a dizer qualquer coisa mais e eu disse.

Fui dizendo, conforme ele ia dizendo, ou perguntando.

«Se algum partido ou conjunto de partidos fizesse uma proposta eleitoral que significasse um Projecto Global de transformação da sociedade, que visasse aprofundar o regime democrático e, simultaneamente, articular criatividade ideológica com medidas reformadoras claras, talvez ponderasse envolver-me, talvez deixasse para trás a minha habitual e pouco responsável inacção e, pela 1ª vez, assumisse um compromisso político, num quadro partidário.»

E continuei.

«Todavia, a coisa não seria assim tão simples, pois, mesmo que me revisse em alguns dos princípios, e chegasse a um compromisso genérico, duvido muito que fosse possível ir para além disso, por eventual distanciamento de pensamento, o que me deixaria na mesma perante os meus interlocutores. Repara, eu sou um democrata radical, ou seja, ainda julgo possível realizar-se efectivamente os pilares fundamentais de uma democracia conceptual: igualdade, liberdade, universalidade, separação de poderes e representatividade. Não, não são meros conceitos, é convicção pessoal, não sei pensar e viver de outra forma. Não concebo uma sociedade não solidária, em que o estado não seja capaz de garantir condições mínimas de existência aos mais fracos e desprotegidos, promovendo, por acção, rigorosamente controlada e balizada, o botton up. Não seria capaz de abdicar das liberdades, nomeadamente, da liberdade de expressão, da livre criação, da livre iniciativa privada e da livre disposição dos benefícios, enfim, do mercado livre. Não me agradam intromissões ao direito de cada um dispor de si, e da sua vida, enquanto individuo e cidadão, da forma que lhe apetecer e lhe der na gana, desde que com a sua acção ou omissão não viole o mesmo direito de outro igual. Quanto aos poderes institucionais, a Constituição, enquanto soft power, e a Lei, essencial, simples, directa e aplicável, são os limites, deixando um amplo espaço para a intervenção da Sociedade Civil

Não perdi o fôlego, porque o meu amigo, nessa altura, me interrompeu para exclamar: «Não acredito que a maioria dos políticos santomenses não partilhem dos mesmos princípios!»

Aí, tive que continuar.

«É-me irrelevante saber se os princípios são partilhados ou não, numa perspectiva meramente teórica, o que me interessa é a atitude, o estilo, a acção, o modo de ser, o modo de estar, o modo de fazer, resumindo, a visibilidade desses princípios na intervenção política santomense, e isso eu não vejo, não cheiro, não ouço, não toco e tão pouco sinto, metaforicamente falando, entendes, não?»

«Não.» Não estava a entender. Muito bem, prossegui.

«Bem, vou tentar explicar-te, dando 3 exemplos e já entenderás melhor como a coisa pode ser grave. O 1º, a formação «existencial», a último ratio, do pensamento e do discurso de todos os políticos santomenses que eu conheço é o Nacionalismo Africano, uma matriz com forte conotação colonialista, aliás, aparece, e muito bem, como sua antítese. Contudo, curiosamente, tendo o nacionalismo africano, aparentemente, sido bem sucedido na superação do colonialismo, com o advento da independência, continua atavicamente a ser o fio condutor do pensamento político em STP, basta verificar que, ainda hoje, se algo corre mal, por manifesta incompetência do decisor político nacional, sempre resta a possibilidade de «culpar» o colonialismo, talvez seja essa uma boa explicação, expiatória, claro, para a tremenda duração dessa matriz e para a relutância em abrir-se o pensamento político a outros paradigmas. Parece-me, não sei. Sei que não posso comungar de statements do género, «a democracia é colonialista», não relativizo regimes autoritários, não posso herdar a autenticité do Mobutu, não concordo com a reforma agrária do Robert Mugabe, não defendo determinismos e essencialismos. Sou um Pós-Colonialista, penso num outro paradigma e o meu discurso reflecte a complexidade da minha época, com todas as incertezas e riscos que ela tem. O 2º exemplo, já não tem nada que ver com o discurso, mas tem tudo com a linguagem, não consigo dizer tantos portantos como habitualmente os políticos do meu país dizem, suponho que a pobreza e a ausência de profissionalismo que isso revela seja um dos requisitos para se fazer parte da classe, e aí, saio a perder, saio mesmo a perder, porque não consigo ser tão básico e displicente. E não lamento. Por fim, o 3º e último exemplo, sou fundamentalmente um performer, estou habituado a trabalhar com base na ideia simples, mas, assumidamente pragmática, de uma pergunta / uma reposta, logo, se tivesse que prestar serviço público agiria sempre pressupondo o seguinte: o que é que se pretende atingir? Defina-se os objectivos e depois discuta-se os meios. O que me obrigaria a ter que fazer balanços permanentemente. E isso teria consequências, para mim, porque vincular-me-ia a prestar um bom serviço público, significado do meu dever, da minha obrigação para com os outros, mas também responsabilizaria a sociedade, que sendo a beneficiária, teria o dever de responder ao desafio, obrigando-se a melhorar a sua performance, mediante a melhoria do serviço público que lhe prestariam. Achas sinceramente que...?»

Respirei fundo, olhei para o meu amigo, ele olhou para mim e continuamos a comer, não fosse a comida ficar fria.

Abílio Neto







4 comentários:

Abílio Neto disse...

Olá Brassa,

Peço desculpas pelo atraso na reacção, mas... eu sou mesmo um democrata radical, o que significa assumir como possível a realização dos 2 grandes príncipios norteadores de uma democracia, sem a normal tendência de valorizar mais uma parte, a igualdade, ou a outra, a liberdade. Tenacidade na defesa destes 2 príncipios e na sua realização. Como podes ver, não se pode ser considerado um «pessimista» quando se pretende defender valores tão cómodos. Talves tenha sido um pouco agressivo na aproximação, o que é natural, face a distância que verifico estarmos, em STP e no mundo, de tornar a Liberdade e a Igualdade possíveis. O bom é existir quem ainda tente.

Abraços,

Abílio Neto

Abílio Neto disse...

Olá Brassa,

Continuemos.

«Grandola vila morena, terra da fraternidade...», plus, «Fraternidade Mestre Jesus...», plus ainda «a fraternidade essencial, por muito que seja o motivo de toda a sociabilidade, está sempre sujeita aos constragimentos da pertença sociocultural (da politica, no sentido mais geral da palavra)», enfim, exs. das infindáveis conotações do conceito.

Contudo, vou ter que te dar uma má notícia: o Rawls utiliza o conceito de fraternidade (dentre outros) para tentar ultrapassar a dificuldade conceptual, em resposta aos seus críticos (normalmente utilitaristas), da realização da liberdade e da igualdade.

Rawls é o Papa do Liberalismo.

Mais curioso ainda, o conceito da Democracia Radical, que me é caro, resulta da leitura de Chantal Mouffe, que é uma culturalista e uma crítica de Rawls (partindo dele), que propõe a ultrapassagem pelo conceito da individualdade comprometida na sociedade civil, conforme Gramsci.

Sobre Gramsci indicarei uma obra muito curiosa, que li faz pouco tempo.

Sigamos o debate.

Peço desculpas pelo erro no «talvez» do comentário anterior.

Abraços,

Abílio Neto

Abílio Neto disse...

Oh Homem!,

A coisa não é tão simples. O conceito é anterior a Rev. Francesa, apesar de estar a ela muito ligado, aparece, verdadeiramente, com o cristianismo já em Roma, designava as relações de igualdade dentro das irmandades, não se falava ainda de liberdade (claro!).

Frater, fratello, frade, irmão, brother... Estás a ver.

Se pesquisares bem, vais encontrar coisas muito curiosas!

Sigamos.

A ideia da Chantal Mouffe tem muito interesse por reconhecer limitações a ideia de fraternidade por esta estar muito ligada ao comunitarismo anglo-saxónico, berço do Conservadorismo inglês e americano, que apesar de ser economicamente Liberal é socialmente restritivo, enfim, tradicionalista, logo, incapaz de assimilar novos paradigmas, como, p/ ex., a erupção social das diversas minorias, que não se encontrariam «confortáveis» com os valores comunitários que os «subordinavam» (relações de poder). Ora, torna-se obrigatório, para a realização plena da Liberdade e da Igualdade, ultrapassar o impasse nas relações pessoa/pessoa, indo além de conceitos utilizados por comunitaristas, para abrir o social a outros poderes emergentes.

Não sei se percebeste a «coisa»... resumidissimamente. Mas, aconselho-te a ler a Chantal Mouffe.

Prometo voltar ao tema. Gosto muito dele.

Abraços,

Abílio Neto

Abílio Neto disse...

Caro Brassa,

Vou fazer um copy do e-mail que te enviei hoje de manhã, sem que tivesse lido o teu comentário acima. Realmente, estamos de acordo no essencial. Mas, há que aprofundar conceitos, tornando-os práticos e visíveis. Insisto, a fraternidade parece-me um conceito «pouco», mas com os seus méritos, claro.

Aqui vai o que te escrevi, em resposta ao teu e-mail, com ligeiras correcções:

«Os bons comentários são sempre benvindos. Não, não os apago, não há censura. Tenta outra vez. Mais curto, claro...

Pois, acredito que levar na cabeça, essa coisa de ser Bloquista predispõe sempre as pessoas para largos debates, como é o teu caso. Isto da Liberdade e da Igualdade tem que ter uma realidade fática, porque a formal / legal já existe, há sempre a Constituição (Justiça) para garantir as liberdades e depois há (?) a Assembleia e o Governo para realizarem as igualidades, tudo teoricamente. A coisa é complexa quando se reflecte sobre a relação entre as pessoas e os poderes acima e entre as pessoas / pessoas na assimilação e prática quotidiana das liberdades e na intervenção social para atenuar as desigualdades. Ora, tu propões, como toda a esquerda «bafienta» welfare state, fraternidade e solidariedade; a direita propõe caridade; e outros autores radicais (de esquerda e liberais!) vão mais longe e propõem que sejam os individuos (miriade de interesses) e a sociedade civil (miriade de interesses) a decidir, organizando-se ou não (assumindo responsabilidades e consequências), dinâmica, reflexiva e conflitualmente, sempre.»

Abraços,

Abílio Neto

PS: Siga o debate. Quem ler isto pode pensar que o debate é inóquo, mas não é, porque, como sugeres, é na interiorização destes conceitos que está a diferença entre o desenvolvimento e o sub-desenvolvimento.