quarta-feira, fevereiro 22, 2006

O livro - Um Clarão Sobre a Baía, Albertino Bragança




É sempre mais interessante contar com interpretações politicamente incorrectas que correctas, porque aquelas são capazes de questionar com eficacia os mitos dominantes.
In El Mundo, 21.08.2006, entrevista à Stanley G. Payne.

Estava a reler a entrevista de Stanley G. Payne, no El Mundo de 21.08.2006, na qual o Professor de Columbia - Historiador, especialista na Guerra Civil Espanhola e em Regimes Ditatoriais -, reflectia sobre o impacto social, político e intelectual do «franquismo» na realidade histórica de Espanha, quando me fixei nas palavras que abrem a minha reflexão, imediatamente associei-as à promessa que havia feito em Janeiro de voltar ao livro de Albertino Bragança, no início de Fevereiro. Na altura, não foi possível, por questões pessoais, deixei passar a data simbólica que pretendia realçar, a prisão do meu pai, Albertino Neto, em Fevereiro de 1977, por um regime ditatorial. Ainda assim, estive tentado em fazê-lo, noutra data simbólica, próxima, também em Fevereiro, que coincidiria com a prisão da minha mãe, Maria do Carmo Bragança Neto, em 1977, pelo mesmo regime, pelas mesmas razões pessoais, não o fiz.

Volto agora e deixo o realce das datas simbólicas para os seus 30 anos. Uma promessa a cumprir, em 2007, seguramente.

Não vou perder tempo a analisar literariamente a obra, ou seja, não me importa a estilística, nem tão pouco a estrutura, deixo essa preocupação para os especialistas, interessa-me sim celebrar o aparecimento de um livro que, pela primeira vez, questiona o ainda grande tabu do Pós-Independência de São Tomé e Príncipe, a Ditadura 75/90.

Leia-se a dedicatória, com atenção. Um preso político morto na cadeia. 1 morto / 100.000 de habitantes, 10 mortos / 1.000.000 de habitantes, 100 mortos / 10.000.000 habitantes and so on. Não é uma questão de numeros, é a percepção da violência, da impunidade e da pulhice.

O livro é político - como todos os bons romances -, todavia, muito mais que contar uma boa estória e muito mais que narrar factos históricos, do meu ponto de vista, o autor constrói a obra em volta da ideia pertinente e bastante actual de a nação santomense dever esforçar-se por não perder a sua memória colectiva, disponibilizando-se por absorver criticamente todos os momentos que nela têm que estar, sob o perigoso risco de, se não o fizer, gerações inteiras poderem perder parte significativa de si, por faltar algo, por faltar uma ligação que torne possível uma mais clara compreensão de qualquer coisa parecida com uma identidade nacional, que se deseja existir e consolidar.

A história é directa, resume-se a histórias de vidas numa ditadura, sendo que, paradoxalmente, nesse tipo de regimes, todas as vidas deixam de ter histórias, por anomia, parece que tudo começa do zero, parece que alguém tem que se designar Criador, parece que alguém se oferece (sem ser convidado) para fazer de Deus, daí, talvez, a obsessão dos ditadores em auto-designarem-se por Pai disto e/ou por Guia daquilo, como se toda a história, bem como toda a vida dentro dela, lhes pertencesse.

Os personagens são de hoje, por serem uma criação de anteontem e uma construção de ontem, são redondas ou circulares, exactamente como os reconhecemos no dia-a-dia santomense.

«Um clarão sobre a Baía» é simplesmente o mais importante romance contemporraneo santomense, porque quebra a regra do silêncio, a ormetá de latitude 0, sobre o mais tenebroso período da história política e social do país. O livro como que abre a porta de entrada a outras obras e outras perspectivas, que, com certeza, passarão a ter um referente.

Daí, mesmo tratando-se de uma literatura correcta - por ex., o ditador não é personagem, quando sabemos não existirem ditaduras sem ditadores -, a sua importância reside no facto de ter sugerido possibilidades, feito o seu trabalho, caberá a outros aceitar o desafio e seguir outros caminhos menos correctos, «…capazes de questionar com eficácia os mitos dominantes». Da minha parte, posso garantir que, mais tarde ou mais cedo, irei a jogo.

E agora vem a parte pessoal.

O autor do livro é meu tio, Albertino Bragança, «Doutor». O autor da capa é meu primo, Ekeseni Bragança, «Neco».

(Um pequeno comentário, em resposta às inquietações da minha prima Maria Alves Neto Trovoada, «Lavinha», que também escreve e muito bem: cara, na família, definitivamente, nunca haverá ricos, nem nunca enriqueceremos, mas haverá sempre gente disposta a enriquecer o país...)

Obrigado Tio, não me esquecerei do Capítulo V, porque o vivi contigo.

Obrigado primo pela bela capa. Nunca serás capaz de me fazer crer que a escuridão subtil que ainda existe na tua Baía, a Baía que imaginaste, desenhaste e criaste, foi deliberada ou se terá sido mera coincidência.

Coisa não há, mas coisa existe!
In Um Clarão sobre a Baía, de Albertino Bragança, Ed. Instituto Camões – Centro Cultural Português em São Tomé e Príncipe.



Abílio Neto

3 comentários:

Abílio Neto disse...

Olá,

O que posso dizer, digo: espero que o Tio Doctor leia o que escreveste.

Eu li e acho lindo! Nunca nos vão poder acusar de não termos dado o melhor de nós à São Tomé e Príncipe, nunca se atreverão a fazê-lo, isso, não lhes permitiremos, e repito, nem lhes permitirá a história, porque ela faz-se também disso, dos que são capazes de escrever, ou melhor ainda, dos que articulam, e eles não são capazes de escrever, nem de articular.

Abraços,

Abílio Neto

Celso Rosa disse...

Caro amigo! Fizeste-me sentir vontade de ler este livro, em primeiro lugar. Acho extremamente importante o que dizes sobre a nação Santomense dever esforçar-se por não perder a sua memória colectiva, disponibilizando-se por absorver criticamente todos os momentos que nela têm que estar, sob o perigoso risco de, se não o fizer, gerações inteiras poderem perder parte significativa de si. No entanto fizeste-me lembrar algo que disse ao nosso amigo Fernando faz poucos dias atrás – já no séc. XVIII Goethe, quando escreveu Fausto e a tragédia do desenvolvimento, colocou o seu actor perante paradoxos como o poder destrutivo do ser humano como condição para o desenvolvimento e a criatividade. É necessário aceitar que tudo quanto foi criado até agora – e, certamente, tudo quanto venha a ser criado – deva e possa vir a ser destruído, a fim de preparar o caminho para a futura criação. Acho portanto, em consequência disto, que tudo o que a nação Santomense vier a ser no futuro será igualmente genuíno. Ter-se-á de estar preparado para isso! Feliz ou infelizmente, goste-se ou não, esta é a dialéctica que o homem moderno deve aceitar para viver e continuar a andar.
Um grande abraço deste português de Angola.
Teu amigo, Celso Rosa

Abílio Neto disse...

Caro Celso,

Dá gosto ter amigos como tu, capazes de abrir ainda mais o leque das abordagens possíveis.

O livro está para ser editado pela editora Caminho em Portugal, o anterior já o havia sido, o título é «Rosa do Reboque e Outros Contos».

Abraços,

Abílio Neto