quarta-feira, abril 05, 2006

A televisão – Lost / Perdidos






Enquanto Eduardo Prado Coelho e Vasco Pulido Valente, há dias, resolveram escrever nas suas colunas no Público sobre a série CSI, eu resolvo escrever aqui sobre Lost / Perdidos, outra série americana em transmissão na TV, que acho fabulosa, apesar de não ser insensível a Crime Scene Investigation.

Eu li os dois artigos com muita atenção, por não ser normal dois intelectuais escreverem nas suas colunas sobre séries de televisão e muito menos sobre a mesma série.

O EPC é um aficionado confesso de alguns fenómenos televisivos, inclusive, tem-se dado ao luxo de, descomplexada e descontraidamente, escrever maravilhas sobre algumas telenovelas da Globo, realçando e insistindo na qualidade narrativa de algumas, argumentando, ainda, que, tratando-se de fenómenos de massas, abordam temas com interesse, com a leveza obrigatória e compreensível, o que me faz imaginar as conversas que deve manter com os seus pares académicos sobre o assunto:

- Julgo identificar algo de pós-freudiano, irracional e até de... pós-estruturalista na relação dele com a Mónica, não achas? Pergunta EPC.

- Com certeza, tal e qual como Philip Roth vê a situação no seu A Mancha Humana!

- Não, refiro-me à Mónica da telenovela Mansões e Uma Casa na Favela...e não à Monica Levinski! Exclama EPC.

Por essas e por outras é que ele coloca a CSI Las Vegas em Los Angeles.

O VPV que está em grande forma - vale a pena ler as suas colunas de fim de semana -, para mim, actualmente, é só o opinion maker mais lúcido de Portugal, apesar de não ser conhecido por reflectir sobre conteúdos televisivos, resolveu fazê-lo e começou a sua coluna corrigindo, subtilmente, o lapso do EPC, colocando CSI Las Vegas em Las Vegas, por aí se nota que ele está diferente, noutros tempos, em que era mais virulento, teria escrito algo parecido com isto, sobre o engano:

- A única semelhança que existe entre Las Vegas e Los Angeles, para além de serem duas cidades da Califórnia, é as duas cidades terem nomes que começam com o plural de um artigo definido espanhol... Los!

De qualquer forma, os dois resolvem «pegar» na série para fazerem uma pequena reflexão sobre o estado actual da Justiça, num mundo cada vez mais complexo e diverso, em que poderosas redes de interesses (político-financeiro, sociais e criminosos) fazem perigar, com a sua capacidade de influir e pressionar, a aplicação do Direito, conforme o conhecemos e conforme nos foi dado a conhecer. Ora, para eles, a série é louvável porque, em ambientes de grande tensão económica e social, ambientes saturados (onde o crime é inevitável), como são os de Los Angeles, NY e Miami, resolve propor uma solução à quase impossibilidade de se fazer Justiça como «antigamente», que é a utilização da tecnologia ou seja uma Justiça Techno, que habilita e confere o grau de certeza e segurança que o Direito necessita para ser legítimo, obviando assim a crise de respostas. Ambos duvidam da solução, mas ambos louvam a proposta, face ao caos que a sociedade parece querer oferecer. A diferença é que EPC admite interessar-se pelo Justicialismo techno, conformando-se, enquanto VPV questiona subtilmente essa conformação ao recordar-nos que no decurso da história houve sempre essa procura de resoluções definitivas pelo lado Direito, portanto, nada de especial, nada que já não houvesse passado.

Como sei que nem um (porque correria o risco de colocar a série na Ilha do Sal), nem outro (porque está tão lúcido que a reporia logo a seguir no seu lugar, o mesmo que dizer, lugar nenhum), vão produzir uma reflexão sobre a série que mais gosto, o que posso dizer, atrevendo-me a enganar-me, é que Lost / Perdidos põe as mesmas questões, em ambiente diferente, uma ilha, ambiente sem saturação, fazendo-as parecer o que são: questões de sempre da humanidade. Faz melhor que CSI, enquanto proposta, porque não justifica as dificuldades da Justiça com os interesses, o caos da diversidade, a saturação social, mas sim com a dificuldade normal de se fazer Justiça quando existem homens que se têm que relacionar e adaptar-se ao meio e à outros homens. E isso acontece sempre que há mais de um homem.

Engana-se quem pensa que a questão / problema está somente na quantidade de homens, modestamente, não me parece, julgo que tudo anda e seguirá andando a volta da qualidade dos homens e do poder e da sua utilização.

Partindo de um ambiente 0, uma ilha deserta, sem os meios de uma sociedade moderna, logo, obrigados a criar a sua própria «sociedade», a sua ordem, os personagens de Lost, que nunca deixam de ser pessoas urbanas com hábitos e costumes urbanos, estão construídos para, em constância, nos sugerirem que o homem pós-moderno não precisa de um sitio, de um local para ser Homem e, mais, estão construídos para representar a diversidade da humanidade (não necessariamente em termos étnicos, mas também) e, por fim, estão construídos para questionar a ideia de que a origem – donde se vem -, conta, porque, aqui, na selva, o cosmopolitismo é tudo, ninguém pergunta a ninguém where are you from?, porque não há tempo para o fazer e nem sequer importa muito quando se está focado em sobreviver, essa pergunta, nesse contexto, seria uma pergunta luxuosa.


Abílio Neto

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